Análise da nova Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola

Georges Humbert – Advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em direito pela PUC-SP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade

 

Em novembro foi publicado o DECRETO Nº 11.786/2023, que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola e o seu Comitê Gestor – PNGTAQ. Em linhas gerais, determina que a PNGTAQ destina-se a todas as comunidades quilombolas com trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada à resistência à opressão histórica sofrida, observado o disposto no Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Entretanto, perdeu oportunidade de promover segurança jurídica na matéria.

De logo, uma simples leitura do Decreto já denota uma série de normas programáticas, isto é, sem efeitos imediatos e concretos, meramente indicativa de princípios, objetivos, projetos, intenções, diretrizes, quando o tema requer ação, disciplina regulatória clara e segura, para solução sustentável dos interesses e direitos fundamentais, individuais e coletivos, em conflito, notadamente quanto ao de propriedade, segurança, igualdade, liberdade e vida.

Outro ponto que merece atenção é a falta de ampla participação e o negacionismo ao uso da ciência. Com efeito, PNGTAQ terá por fonte exclusiva as próprias comunidades quilombolas, formulados, aprovados, geridos e monitorados , conforme os usos, os costumes e as tradições de cada território, somente pelas referidas comunidades, bem como será prioritariamente implementada por meio de planos locais de gestão territorial e ambiental, que consistem em projetos territoriais e ambientais específicos.

Antidemocrático, ainda, a formação do Comitê Gestor. Isto porque, o Comitê Gestor somente observada a paridade entre o Poder Executivo federal e as representações quilombolas, sem levar em consideração os representantes eleitos pelo povo (poder legislativo), a própria sociedade civil organizada, o setor empresarial, a comunidade científica e quaisquer outros atores inerentes a efetiva participação democrática e representativa dos legítimos interesses do povo brasileiro.

Finalmente, há controvertida disposição no que tange aos direitos reais sobre territórios, segundo a qual aplicar-se-á a PNGTAQ às áreas ocupadas por comunidades quilombolas que tenham Relatório Técnico de Identificação e Delimitação publicado em Diário Oficial dos Estados ou da União, resguardados eventuais direitos de terceiros. Poderia ter disciplinado melhor o procedimento de ultimação de tal relatório.

As comunidades quilombolas são remanescentes e descendentes diretas dos negros escravizados no Brasil. Esses espaços nasceram a partir da luta do povo negro pela liberdade, sendo locais que serviam de abrigo e refúgio durante a fuga do regime escravocrata. Por isso, a palavra Quilombo se tornou sinônimo de resistência. Não pode se admitir banalização, manobra e uso de importante instrumento de titulação de direitos especiais, para fins de inviabilizar empreendimentos, obter vantagens, prejudicar concorrentes ou repassar áreas e posses, com enriquecimento sem causa.  O reconhecimento de uma comunidade como quilombola ocorre por meio do processo de autodeclaração, assim como das pessoas que pertencem àquele grupo. Esse critério segue a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre povos indígenas e tribais, e diz no artigo 1° que “A autoidentificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.”.

Para o reconhecimento desses territórios, poderia o Decreto uniformizar procedimentos, estudos, fases e critérios, para confirmar que para expedição do ato final de destinação do justo título, faz-se necessário que os grupos e demais afetados passem por um criterioso processo de análise e, assim, recebam a titulação das terras, com a incidência da lei geral de processo administrativo, em todas as fases, seja durante o trâmite na Fundação Palmares, seja quando remetido ao IPHAN, SPU, FUNAI, Conselho de Defesa Nacional, Serviço Florestal Brasileiro, IBAMA, Instituto Chico Mendes e os órgãos ambientais estaduais, para avaliação dos dados levantados, sendo, por fim, ultimado no âmbito do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que publica uma portaria no Diário Oficial da União e do estado, encerrando o processo com a titulação do território quilombola, e da SPU, que somente após tal ato, passa a ter ingerência e gestão sobre a área, pois que passa a ser afetada ao patrimônio da União. Neste percurso, muitos órgãos invadem competências, ocorre grilagem e desvalorização de áreas, suspensão de licenças e até demolição de empreendimentos lícitos, a partir da mera autodeclaração, o que é vedado pela ordem constitucional e democrática, e que precisa ser devidamente regulamentado, sendo esta mais uma oportunidade perdida, deixando em aberto o risco para comunidades, coletividade, demais interessados e para o erário público.

Desta forma, pode-se afirmar que, apesar de ser substancialmente programático, sem maiores efeitos concretos, um programa de ações, objetivos e metas, o Decreto é bem vindo, como instrumento de se potencializar direito das comunidades tradicionais, mas precisa de aperfeiçoamentos para se ajustar aos preceitos constitucionais de ampla e plural participação nas políticas públicas, inclusão da ciência nos processos e garantia do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, para fins de segurança jurídica à coletividade, à comunidade quilombola e aos terceiros afetados.

 

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