IBGE e Mata Atlântica: importância da ciência, da segurança jurídica e do amplo debate

Georges Humbert – Advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em direito pela PUC-SP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – Ibrades.

 

Atendendo a uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou o início dos trabalhos para a atualização do mapa de aplicação da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), que deve ser finalizado até 2026, de modo que ele possa corresponder fielmente à ocorrência desse bioma no território brasileiro.

Recebido com entusiasmo por diversos setores, especialistas advertem a importância de se respeitar a ciência, o amplo debate e se evitar sensacionalismos ambientalistas e o monopólio de suposta existência de fatos público e notório nesta matéria.

O que preocupa é que inicialmente a atualização foi requerida para Minas Gerais, no bojo do Inquérito Civil 1.22.000.002079/2022-12, tendo um objeto específico, isto é, a APA Morro da Pedreira, unidade de conservação federal situada nos municípios de Santana do Riacho, Conceição do Mato Dentro, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Jaboticatubas, Taquaraçu de Minas, Itabira e José de Melo, na região central do estado, sem se levar em consideração todo o território mineiro, muito menos do país. É preciso avaliar com cuidado a necessidade de tão amplo escopo, assim como as peculiaridades locais. Salvador, por exemplo, tem recente e atualizado estudo que demonstrou que, onde para o MP e radicais ambientalista era Mata Atlântica, a ciência demonstrou que não era, ou o estágio era diverso daquele sempre sustentado como incontestável.

O Ministério Público Federal destaca em sua Recomendação, que a Mata Atlântica é um dos biomas mais ricos em diversidade no planeta o mapa que mostra a distribuição da Mata Atlântica no território deve ser atualizado periodicamente, para que possa refletir as mudanças na cobertura florestal e no uso da terra, de forma a orientar corretamente a aplicação das leis ambientais, identificar áreas prioritárias para a conservação e possibilitar o planejamento de ações de restauração ecológica, ainda mais quando a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) previu a necessidade de confecção de um mapa para delimitação da área de cobertura vegetal do bioma, “obviamente estava implícito que essas informações oficiais refletissem a realidade, ainda que essa realidade passe por frequentes alterações”.

É preciso acender o sinal de alerta para o tal “ponto controvertido” na visão do MPF: a suposta existência de trechos de Mata Atlântica ser fato notório ou merecerem amparo em citações de meras dissertações de mestrado ou resumos de pesquisas isoladas, como consta dos fundamentos da Recomendação expedida ao IBGE. É preciso ampla pesquisa, ouvindo-se diversos cientistas, todos os setores da sociedade, do próprio Ministério Público, visitas de campo e uso de tecnologia, sem esquecer que há muita matéria cuja condição de proteção especial depende de uma série de requisitos e do exercício efetivo de uma função socioambiental da área.

Publicado pelo IBGE há 17 anos (2006), o mapa é um instrumento fundamental para orientar corretamente a aplicação das leis ambientais, identificar áreas prioritárias para a conservação e planejar ações de restauração ecológica. Além disso, como se trata de informação oficial de órgão do governo federal, ele tem papel fundamental nas ações de outros órgãos governamentais, em especial nas atividades de licenciamento ambiental.

“Todo mundo vinha pedindo que o IBGE atualizasse este mapa especifico elaborado em 2006, que representava a formação, em aderência à Lei da Mata Atlântica-Lei 11.428. Elaborado faz 18 anos o mapa carece de atualização com uso de novas técnicas de geoprocessamento e melhoria em sua escala, totalmente inadequada e baixa precisão.” Explica Ênio Fonseca, Engenheiro Florestal, especialista no setor que já atuou na área privada e pública, inclusive como Superintendente do IBAMA. “Sabe-se que muitas áreas deixaram de ser consideradas como Mata Atlântica, enquanto tantos outras equivocadamente assim foram declaradas, o que gera incerteza jurídica e dupla violação ao sistema jurídico, seja quanto a parte que deixou de ser especialmente protegida, mas também aquela cuja norma mais restritiva não deveria ser aplicada, impedindo o progresso social, a erradicação da pobreza, a construção de habitações, enfim, o desenvolvimento sustentável”, alerta Marcelo Buzaglo Dantas, advogado, pós-doutor e docente Permanente dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UNIVALI. “Situação que merece muito cuidado e gera preocupação é a questão das situações já consolidadas, como as decisões judiciais transitadas em julgado, construções em curso, licenciamento expedidos, empreendimentos já em fase de instalação, parcerias público privadas, concessões de serviços públicos e obras de infraestrutura já licitadas, cuja inovação para a condição de situada em área especialmente protegida, sem maiores discussões e aplicação de direito intertemporal pode causar impactos econômicos, sociais e ambientais irreparáveis”, ressalta Buzaglo Dantas, que também é membro do Ibrades e Professor dos Cursos de Especialização em Direito Ambiental na PUC/SP, PUC/RJ, UNISINOS e CESUSC.

Por outro lado, conforme explicou o MPF na recomendação, por se tratar a Mata Atlântica de um bioma extremamente dinâmico, com mudanças frequentes na sua configuração devido, entre outros fatores, a atividades humanas e eventos naturais, o mapa precisa de constante atualização, ainda mais quando, na visão do MPF, a última versão do mapa também possui lacunas e omissões, identificadas inclusive por outros instrumentos de aplicação das leis ambientais.

No ofício encaminhado no último dia 8, o IBGE comunica que já está executando a etapa de “Estudos de integração temática para atualização de limites do Mapa de Biomas incluindo atividades de campo”, além de ter formulado consulta ao Ministério do Meio Ambiente sobre a atualização do Mapa de Aplicação da Lei 11.428.

Diversos especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes que o processo de revisão precisa ser participativo, de sorte a que as variáveis econômica e social sejam efetivamente respeitadas a partir de uma visão integrada e integrativa. “Ainda que todo processo de revisão e de aprimoramento de bases técnicas à interpretação da lei seja bem-vindo, é preciso compreender que a falta de um zoneamento ecológico-econômico gera espaço para visões do todo a partir de situações pontuais, e isso pode distorcer o processo em seu todo. O Mapa não pode ser uma peça de aplicação isolado ou se sobrepor, indiscriminadamente, a todo um sistema jurídico e uma realidade já consolidada. O Mapa deve ser visto como mais um componente do sistema, sujeito à contraponto e permanente atualização”, alerta o jurista Werner Grau, doutor em direito pela USP.

Segundo pesquisa da Universidade Federal de Goiás, neste processo, “é grande o legado de informações colhidas e registradas e catalogadas, pelas estatísticas sociais e administrativas geradas, pelas observações acerca da geologia, do clima, do uso da terra, dos costumes, do modo devida, entre outras… Nem todos os relatos e/ou descrições acerca da vegetação nativa ou do uso da terra contidos nesses documentos apresentam um par de coordenadas geográficas, quando muito uma latitude, o que tem dificultado inferências ou mesmo a reconstrução da abrangência original da vegetação.”

Outro ponto relevante é o dever, a a necessidade de se distinguir área urbana e rural, função social da terra e da cidade, áreas antropizadas, nativas e consolidadas, razões pelas quais muitas soluções somente se dão caso a caso, sendo o Mapa do IBGE mais um importante referencial, que pode ser complementado com informações de estudos fitossociológicos, zoneamento e outros já existentes, como o realizado pela Ademi e Ministério Público da Bahia para Salvador, todos ambos importantes na tomada de decisão em processos de licenciamento e judiciais

De toda sorte, a abertura de processo de revisão do Mapa pelo IBGE não deixa de ser uma boa notícia, para conferir maior precisão e segurança ao tema da Mata Atlântica, mas, ao contrário da Recomendação do MPF, o IBGE não pode parte de premissas equivocadas, como a de existência de “fato notório”, muito menos se valer de uma ou outra dissertação de mestrado ou resumo científico, mas deve se valer da oitiva da comunidade científica, em especial da Embrapa, IBAMA, INPE, INCRA, Icmbio, CNA, CNI, OAB, universidades, sem prejuízo da ampla participação da sociedade civil organizada e, sobretudo, fidelidade aos parâmetros legais e técnicos de definição das categorias, estágios e estado de Mata Atlântica e seus respectivos meios de proteção e exploração, sem olvidar situações consolidadas e outras questões específicas.

 

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