Licenciamento na Mata Atlântica: LC nº 140/ 2011 ou Lei nº 11.428/2006

Georges Humbert – Advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em direito pela PUC-SP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade.

 

No Brasil, o processo de licenciamento e autorização ambiental sempre foi um gargalo. A lentidão, o alto custo e a insegurança técnica e jurídica norteavam esse processo, com danos ao meio ambiente, à economia e à justiça social. Com a Lei Complementar (LC) nº 140/2011, essa demanda foi, em grande medida, solucionada. Todavia, persistem dúvidas em torno de quem deve emitir as licenças e autorizações em mata atlântica, diante de aparente conflito do artigo 14 da Lei nº 11.428/2006 (LMA) e o artigo 13 da LC nº 140/2011.

Nos termos do Art. 14 da LMA, a supressão de vegetação primária e secundária no estágio avançado de regeneração somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública, sendo que a vegetação secundária em estágio médio de regeneração poderá ser suprimida nos casos de utilidade pública e interesse social, em todos os casos devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto. Além disso, determina que a supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, assim como que a supressão de vegetação no estágio médio de regeneração situada em área urbana dependerá de autorização do órgão ambiental municipal competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente, com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.

Já pelo Art. 13 da LC 140/11, Os empreendimentos e atividades são licenciados ou autorizados, ambientalmente, por um único ente federativo, em conformidade com as atribuições estabelecidas nos termos desta Lei, sendo certo que os demais entes interessados podem manifestar-se ao órgão responsável pela licença ou autorização, de maneira não vinculante, respeitados os prazos e procedimentos do licenciamento ambiental. Ademais, a supressão de vegetação decorrente de licenciamentos ambientais é autorizada pelo ente federativo licenciador.

Como se denota, a lei específica de proteção da mata atlântica, prevê um procedimento de anuência para autorização de supressão, enquanto a lei complementar, específica de processo e procedimento, prevê que quem licencia autoriza, sendo que os demais entes não dão anuência, mas mera opinião, não vinculante, e desde que não ultrapasse o prazo legal.

Verifica-se, destarte, a existência daquilo que Kelsen denomina de conflito aparente de normas do ordenamento jurídico, denominadas de antinomias. Aparente, pois o próprio sistema jurídico possui instrumento para a solução. São três os critérios: hierárquico, cronológico e da especialidade.

Por esses três critérios, fica evidente que prevalece a LC nº 140/2011, neste caso pelos três critérios, não deixando dúvidas. Isto porque: 1) ela, por ser complementar, é hierarquicamente superior, superando e derrogando, assim, qualquer outra que não seja do mesmo nível, como a LMA; 2) por ser de 2011 e a LMA ser se 2006, a LC nº 140 também prevalece em confronto com esta, como no caso em debate; 3) finalmente, porque a LMA é da especialidade de direito material de Mata Atlântica, enquanto a LC nº 140/2011 é de especialidade exclusiva de direito processual de Licenciamento, pelo que, no conflito de normas na matéria autorização de supressão, que é procedimento do processo de licenciamento, a LC nº 140/2011 prevalece.

Outrossim, não se diga que a Mata Atlântica é mais protetiva e a LC nº 140 é retrocesso ambiental, sendo inconstitucional. Este argumento é um negacionismo e terraplanismo jurídico.

Ora, nada prova que o formato da LC 140/11 é mais danoso ao meio ambiente. Pelo contrário. Na imediata vigência da lei da Mata Atlântica, aumentaram os desmatamentos e, o que é mais grave, havia uma paralisia no licenciamento, porque, por ser de impacto e interesse predominantemente local, as anuências de supressão nunca eram expedidas pela União e Estado, os quais se ocupavam, em larga medida, daquilo que é de sua competência precípua, as grandes questões de interesse nacional e regional.

Neste contexto, já afirmamos, à longa data, aquilo que reafirmamos e formulamos em tese recente, publicada na obra coordenada pelo professor Edis Milare. Em nosso “Segurança jurídica a partir de uma teoria geral dos princípios jurídicos ambientais” (In: 40 anos da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Belo Horizonte: D’Plácido, 2021), sustentamos a total “ausência de razão e racionabilidade teórica, e mesmo de ofensa ao estado democrático de direito, notadamente ao direito individual fundamental à segurança jurídica e aos deveres fundamentais de desenvolvimento nacional econômico, social e de sustentabilidade, que se enquadram os denominados Princípios da “Vedação ao Retrocesso” e “Prevalência da Norma Mais Restritiva”, sustentando por alguns como valores jurídicos máximo do direito ambiental brasileiro. Pelo suposto princípio da “Vedação ao Retrocesso”, sugere-se que “a ordem constitucional brasileira não assegura proteção constitucional às iniciativas legislativas estaduais que se afastem do dever de proteção dos direitos fundamentais [neste caso, do dever de proteger o ambiente], e mesmo à iniciativa do poder central que proponha semelhante redução nos níveis de proteção sem que seja proposta realidade compensatória, configurando-se os excessos em seu exercício, desvios censurados sob o ângulo dos artigos 24, caput, inciso VI, §§ 2º e 3º e, 225, caput, e inciso VII, da CRFB de 1988.”
(…) Por sua vez, pela tal suposta norma jurídica princípio do direito ambiental brasileiro, da “Prevalência da Norma Mais Restritiva”, ter-se-ia que uma regra de precedência lógica‖, que estabelece que em casos de conflitos de fontes o juiz deve aplicar de modo prevalente a que tutela, de modo mais restritivo, a intervenção econômica ou social no ambiental. Igualmente, nem precisamos entrar no mérito da impropriedade na teoria geral do direito e da Constituição desta construção, notadamente quanto as questões jurídicas formais relacionadas à competência[6] e também materiais, especialmente no que se refere ao devido processo legal substantivo e a sustentabilidade. Isto porque, basta perceber que a norma mais restritiva do Código Florestal, que requer 15 ou 30 metros de área de vegetação nativa e intocável às margens em todo rio urbano brasileiro, não se verifica em nenhum, ou quase nenhum, os quais, pelo contrário, são margeados por cimento, ruas, avenidas, esgotos ou grama, em regra. Será que uma norma, menos restritiva, com 2 a 5 metros, não protegeria mais o meio ambiente? Claro que sim, pois nem sempre o mais restritivo é o mais protetivo, sustentável, razoável, eficiente e eficaz.”

Na mesma toada tribunais brasileiros tem confirmado esta tese da prevalência da LC nº 140/2011 em face à LMA, no que tange ao licenciamento e autorização ambiental. Senão veja-se os seguintes precedentes do TJ-SC e do TJ-BA:

REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. MEIO AMBIENTE. SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM MATA ATLÂNTICA. EMPREENDIMENTO DE IMPACTO LOCAL SUJEITO A LICENCIAMENTO PELO MUNICÍPIO. COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO LICENCIADOR PARA A CONCESSÃO DA AUTORIZAÇÃO DE CORTE. EXEGESE DA LEI COMPLEMENTAR N. 140/2011. SENTENÇA MANTIDA. REMESSA DESPROVIDA.
(…) A Lei Complementar n. 140/2011, que trata da competência administrativa em matéria ambiental, estabelece que cabe ao órgão ambiental municipal autorizar o corte de vegetação em empreendimento que cause ou possa causar impacto de âmbito local sujeito a licenciamento pelo Município (…)

A previsão também é especial e deve prevalecer em detrimento do que prevê a Lei n. 11.428/2006, referente ao Bioma Mata Atlântica, não só porque constitui matéria reservada a lei complementar, nos termos do art. 23, parágrafo único, da Constituição Federal, mas também porque é a solução mais adequada à luz do princípio da proporcionalidade.
(REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL No 5000180-92.2019.8.24.0139/TJ-SC)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO PERTENCENTE AO BIOMA MATA ATLÂNTICA PARA A IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTO. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA O LICENCIAMENTO E AUTORIZAÇÃO DE SUPRESSÃO. CRITÉRIO DA PREPONDERÂNCIA DE INTERESSE. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA ANUÊNCIA DO INEMA. IMPOSSIBILIDADE. LEI COMPLEMENTAR 140/11 QUE ATRIBUI A COMPETÊNCIA PARA AUTORIZAÇÃO APENAS AO ENTE LICENCIADOR. DERROGAÇÃO DO ART. 14, § 2ºDA LEI 11.428/2006. ART. 139, § 2º DA LEI ESTADUAL N.º 10.431/06 QUE DELEGA AO MUNICÍPIO A COMPETÊNCIA PARA A PRÁTICA DE ATOS ADMINISTRATIVOS NOS PROCESSOS DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DE IMPACTO LOCAL. LEI 8.915/2015 QUE NÃO FAZ REFERÊNCIA À ANUÊNCIA DO INEMA. FEDERALISMO COOPERATIVO. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À LEGÍTIMA CONFIANÇA DO ADMINISTRADO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE DA DURAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE QUE NÃO PODE SERVIR COMO ÓBICE AO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL. ADOÇÃO DE MEDIDAS COMPENSATÓRIAS PELA EMPRESA REQUERENTE. PREENCHIMENTOS DOS PRESSUPOSTOS PARA A CONCESSÃO DA LIMINAR. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO.
(Agravo de Instrumento : AI 0015355-45.2017.8.05.000. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia).

Com efeito, na esfera de competências administrativa dispostas pelo art. 23, estão outorgadas como competência comum a todos os entes da federação, incluindo Municípios, as de: proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; preservar as florestas, a fauna e a flora.

Da simples leitura do art. 23 da Constituição emerge que os municípios tem competência ambiental administrativa, o que inclui o dever-poder de processar o licenciamento e expedir licença ambiental, em igualdade de condições à União e aos Estados, por pressupostos do pacto federativo enquanto princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil.

Diante do exposto, pode-se afirmar que o exercício de competências constitucionais pelos Municípios, no Brasil, é a regra e não a exceção. Deve ser estimulada, jamais restringida. É o que impõe a Carta Magna de 1988 Desta forma, a preservação da autonomia Municipal é de fundamental importância. Para tanto é preciso efetivar o seu fortalecimento institucional, financeiro e de seus órgãos. Conseguintemente, teremos a celeridade, a eficiência e eficácia indispensáveis para a fiel execução da lei, da Constituição e de sua finalidade basilar: o bem estar social e a sadia qualidade de vida, com igualdade, dignidade e erradicação da pobreza.

Sendo assim, nada justifica, jurídica ou logicamente, o preconceito com os Municípios ou a inconstitucional e ilegal tutela e custódia destes pela União ou Estados, em matéria ambiental, florestal ou de licenciamento.

De todo modo, não resta dúvida de que todos órgãos ambientais tem o dever-poder de licenciar e autorizar supressão de vegetação, independentemente de anuência de outros – mas mera interveniência facultativa, na forma do 7, 8, 9 e 13 da LC nº 140/2011, inclusive em Mata Atlântica.

Tudo isso conforme melhor interpretação e solução de antinomia aos arts. 23, VI e VII, e parágrafo único, 24, VI e VIII, 30, 182 e § 1o, e 225, caput e § 4º da Constituição Federal, do art. 7, XIV, “b” e seu parágrafo primeiro, 9, IX, “a”) da LC nº 140 e art. 14 da Lei nº 11.428/2006, que trata de Mata Atlântica, desde que preenchidos os requisitos procedimentais da LC nº 140/2011 e materiais do Código Florestal e da LMA.

 

 

 

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