Medo e Insegurança: o Papel da Polícia Dentro de uma Política Criminal Voltada à Eliminação do “Inimigo”

Carlos Frederico Vasconcellos Monteiro Rosa – Professor de Direito Processual Penal (UNINABUCO – Recife). Mestrando em Direitos Humanos (UFPE). Especialista em Direito Penal e Processual Penal.

 

Resumo: Esse artigo tem o objetivo de analisar como o medo e a sensação de insegurança da sociedade interfere na elaboração de uma política criminal e como o Direito Penal pode ser utilizado como instrumento de caça ao “inimigo”. Para isso, trabalhamos conceitos como democracia, direitos humanos, direitos fundamentais, estado de exceção e segurança pública. Dentro desses temas, fizemos uma análise sobre possíveis aproximações e distanciamentos do modelo de política criminal contemporânea adotada pela maioria dos países ocidentais, comparando-o com o esperado para um Estado Democrático de Direito. Como pano de fundo teórico, utilizamos as reflexões de autores como Thomas Hobbes, Giorgio Agamben, Carl Schmitt, Zygmunt Bauman, Enrique Dussel, Philip Zimbardo, Raúl Zaffaroni, Michel Foucault, Loic Wacquant, Rubens Casara, Luís Eduardo Soares, Guilherme de Souza Nucci e Pedro Estevam Serrano.

Palavras-chave: Medo; Insegurança; Direito Penal; Política Criminal; Democracia

1. Primeiras palavras 

“Desde sua própria origem o poder punitivo mostrou uma formidável capacidade de perversão,

montada – como sempre – sobre um preconceito que impõe medo, neste caso sobre a velha

crença vulgar europeia da maleficia das bruxas, admitida e ratificada abertamente pelos acadêmicos

de seu tempo” (Raúl Zaffaroni)

As cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988 trazem em seu escopo direitos que são resultado de conquistas coletivas de homens e mulheres como seres humanos ao longo da história, e, por isso, são inalteráveis mesmo que haja vontade e permissão do próprio sujeito de direitos, tendo em vista que tais direitos são indisponíveis por essência. Dentre estes direitos que, majoritariamente, estão previstos no artigo 5º da Carta Magna, estão direitos como vida, liberdade e segurança. No entanto, embora o caput deste dispositivo preveja a igualdade de todos perante a lei de maneira indistinta, sendo garantido aos brasileiros e estrangeiros residentes no país tratamento igualitário, não são raras as vezes que observamos a violação desses direitos por parte do próprio Estado para uma determinada classe social.

Ao longo do tempo, o Estado criou no imaginário coletivo figuras desprovidas de direitos, que “assombram” a população e devem ser eliminadas em prol de um suposto bem comum. Assim, surgem os “inimigos” da sociedade, seres desumanizados que sob a chancela popular, derivada do medo e da sensação de insegurança, são vítimas de reiteradas arbitrariedades, ou seja, a segurança de uns é a insegurança de outros, a integridade e a dignidade humana de uns se sobrepõem a de outros, a vida de uns valem mais que a vida de outros e a liberdade de uns dependem do cerceamento da liberdade de outros.

Neste contexto, o Poder Público muitas vezes se excede no exercício do seu jus puniendi, mitigando, inclusive, ditames democráticos, com a potencialização do Direito Penal em detrimento de outras áreas do nosso ordenamento jurídico, alterando características democráticas básicas como o Princípio da Intervenção Mínima que prevê que em um Estado de Direito o Direito Penal seja utilizado como último recurso (ultima ratio), e direitos fundamentais são violados sob a justificativa da proteção.

Destarte, a busca pela eficiência da política criminal contemporânea resulta em uma aparente aproximação com um Estado de exceção, seja, por exemplo, mediante a elaboração de leis demasiadamente rígidas, impostas a categorias específicas de delinquentes, seja pela atuação arbitrária de seus órgãos de segurança.

2. A criação do inimigo e a violação de direitos fundamentais 

De acordo com Bauman (1999), o crescimento da violência somado a sensação de insegurança sentida pela população vem, ao longo dos anos, mudando a forma de pensar e agir das sociedades ocidentais. Não apenas através de medidas individuais de proteção, o medo faz com que as pessoas, consciente ou inconscientemente, na busca por segurança, muitas vezes, relativizem seus direitos em troca da possibilidade de uma vida mais tranquila, permitindo uma atuação mais dura e invasiva por parte do Estado em suas privacidades, além de desenvolver um comportamento individualista no relacionamento interpessoal.

O fator medo certamente aumentou, como indicam o aumento de carros fechados, das portas de casa e dos sistemas de segurança, a popularidade das comunidades ‘fechadas’ e ‘seguras’ em todas as faixas de idade e renda e a crescente vigilância nos espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo que aparecem nos veículos de comunicação em massa (ELIN, 1997 apud BAUMAN, 1999, p. 55).
Se, por um lado, o que se verifica no caso concreto, é uma sociedade se tornando cada vez mais violenta e egoísta, por outro, também se observa um Estado mais forte e intromissivo nas esferas individuais, por meio de legislações mais punitivistas onde o Direito Penal ganha status de “salvador da pátria”.

Casara compactua da mesma ideia ao dizer que:

O medo é um motor para o consumo, para o controle da população e até para golpes de Estado. É essa “sensação” de medo, de insegurança, que justifica toda propaganda relacionada às políticas repressivas, as campanhas que visam à supressão dos direitos e garantias dos “inimigos” e também ao crescimento da chamada Indústria da Segurança (venda de armas, carros blindados, câmeras de vigilância, serviços privados de segurança etc.) (CASARA, 2017, p. 187).

Para garantir a necessidade de um Estado punitivo e forte que consiga combater de frente o problema da criminalidade e as perturbações à ordem pública, em ação conjunta (Poder Público, mídia etc.), é disseminada uma enorme sensação de insegurança, mostrando à sociedade a incivilidade do povo. Nesse sentido, Wacquant descreve que:

Espalhando um discurso alarmista, mesmo catastrofista, sobre a “insegurança”, animado por imagens marciais e difundido até a exaustão pelas mídias comerciais, pelos grandes partidos políticos e pelos profissionais da manutenção da ordem – policiais, magistrados, juristas, especialistas e vendedores de aconselhamento e serviços em “segurança urbana” – que competem entre si na recomendação de remédios tão drásticos quanto simplistas (WACQUANT, 2003, p. 26).

Diante dessa realidade, podemos dizer que diferentes formas de manifestação da violência foram registradas ao longo do século XX, conforme escreveu Nelson Mandela no preâmbulo do

Relatório Mundial sobre Violência e Saúde elaborado pela Organização Mundial de Saúde (GENEBRA, 2002):

O século vinte será lembrado como um século marcado pela violência. Em uma escala jamais vista e nunca antes possível na história da humanidade, ele nos oprime com seu legado de destruição em massa, de violência imposta. Mas esse legado – resultado de novas tecnologias a serviço de ideologias de ódio – não é o único que carregamos, nem que devemos enfrentar.

No entanto, embora a violência apresente-se como um fenômeno intrinsecamente humano e com estrutura complexa, para que seja respeitado o Estado Democrático de Direito, fundamentado nos princípios constitucionais: garantias fundamentais e direitos humanos; espera-se que, mediante proteção jurídica, seu crescimento seja inibido.

Doutrinariamente, o conceito de “Direitos Fundamentais” não é pacífico tanto no que tange à sua terminologia quanto à sua definição. No que se refere à terminologia, autores como: Norberto Bobbio, Paulo Bonavides, Alexandre de Moraes e José Joaquim Gomes Canotilho, por exemplo, utilizam nomenclaturas diferentes para tratar dos mesmos direitos, tais como “Direitos Humanos”, “Direitos do Homem”, “Direitos Naturais”, “Direitos Individuais”, “Liberdades Públicas” etc.. O imbróglio referente à sua definição, tampouco é mais simples, o que torna difícil uma conceituação sintética e precisa.

Diante dessas diferenças conceituais, os legisladores constituintes brasileiros se posicionaram de maneira clara ao intitular de “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” o primeiro capítulo da Carta Magna Brasileira, nomenclatura considerada mais adequada para tratar o núcleo intangível de direitos dos brasileiros e estrangeiros que estejam em terras nacionais: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).

Didaticamente, Araújo define:

Os direitos fundamentais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões. Por isso, tal qual o ser humano, tem natureza polifacética, buscando resguardar o homem na sua liberdade (direitos individuais), nas suas necessidades (direitos sociais, econômicos e culturais) e na sua preservação (direitos relacionados à fraternidade e à solidariedade) (2005, p. 109-110).

Destarte, acompanharemos a ideia de que os direitos fundamentais se originam da positivação dos direitos humanos pelo ordenamento jurídico interno, tendo sua maior representação na Constituição Federal de 1988, ou seja, são direitos inerentes ao ser humano, que independem da condição pessoal e cuja função é garantir a dignidade do indivíduo e salvaguardá-lo da atuação excessiva do poder estatal.

Os direitos fundamentais colocam-se como elementos imprescindíveis para todas as Constituições, em três aspectos: consagrar o respeito à dignidade humana; garantir a limitação de poder; e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2003, p. 20).

Contudo, é relevante mencionar que tais direitos, embora fundamentais e ditos necessários à manutenção de uma existência humana justa e digna, não são absolutos, nem mesmo o mais importante deles, o direito à vida, relativizado no XLVII, a, do art. 5º, CF/88, quando admite a pena de morte como sanção em casos de guerra formalmente declarada.

Para nosso estudo, é importante enfatizar que dentre os direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988, encontra-se o direito social segurança pública, previsto no artigo 6º.
Para Carvalho,

A segurança pública tem em vista a convivência pacífica e harmoniosa da população, fundando-se em valores jurídicos e éticos, imprescindíveis à existência de uma comunidade, distinguindo-se, neste passo, da segurança nacional, que se refere mais à segurança do Estado (2007, p. 1116).

No que diz respeito ao “Título V: Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas – Capítulo III: Da Segurança Pública”, consideramos que este traz um conceito bastante discutível, senão um dos mais imprecisos, vagos e questionáveis do Direito, quando justifica o exercício da segurança pública à preservação da ordem pública. Pois, o que seria ordem pública?

A predicação sobre ordem pública é fundamentada na ideia de tranquilidade e harmonia social, ou seja, o Estado deve assegurar ao seu povo uma situação de equilíbrio, controlando possíveis desordens ou perturbações. Em verdade, a indefinição nos conceitos de ordem ou perturbação serve como um grande instrumento que pode levar o Estado a abusar do seu poder de intervenção por meio de violações de direitos.

Neste sentido, Casara explica que:

No Brasil, que adotou o modelo bélico estadunidense de reação às condutas (e pessoas) problemáticas à luz da razão neoliberal, as favelas e as periferias tornaram-se o cenário em que ocorrem espetáculos promovidos pelos agentes estatais responsáveis pela “ordem pública”, tais como as exibições do poderio bélico estatal, a troca de tiros com pessoas apontadas como criminosas e as “pacificações” (na verdade, ocupações militares seguidas da instauração, em maior ou menor grau, de regimes de exceção). Desses novos guetos, o Sistema de Justiça seleciona a maioria das pessoas que figurar como ré e acabar condenada (CASARA, 2017, p. 189).

A questão central é se o Estado pode ou não utilizar tal poder intervencionista de modo a interferir na vida privada de seus cidadãos em detrimento da preservação da suposta paz e segurança destes.

Thomas Hobbes, filósofo inglês contratualista, que idealizou o Estado Moderno como um Leviatã – soberano – sob a justificativa de que o homem em seu estado natural é bárbaro, que vive em constante guerra de todos contra todos e que só através de um pacto social onde todo poder é concentrado no Estado que tem como contrapartida, a responsabilidade de garantir a civilidade e a segurança do povo, aduz:

Constitui direito de qualquer homem ou assembleia que detenha a soberania julgar todos os meios para a paz e a defesa, bem como tudo o que possa causar perturbação ou dificuldade, pois essa é a finalidade da instituição, já que quem tem direito a um fim tem direito aos meios. Quem detém a soberania pode fazer tudo o que considere necessário fazer, antecipadamente, para preservação da paz e da segurança, mediante a preservação da discórdia, no interior, e da hostilidade, no exterior, bem como tudo que for necessário para recuperar a paz e a segurança, se estas forem perdidas (HOBBES, 2012, p. 144).

É importante lembrar que a ideia de que a soberania estatal supera os direitos individuais em prol do bem comum chancelaram, por exemplo, o Império Nazista alemão iniciado em 1933 com a queda da República de Weimar e a ascensão de Hitler, bem como o golpe militar de 1964 no Brasil.

O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe (BRASIL, 1964).

Em ambos os casos, a história relata que a palavra “ordem” foi um dos motes utilizados para justificar violações de direitos praticados pelo Estado autoritário. Logo, embora muito utilizada na Constituição Cidadã, a expressão “ordem pública” apresenta-se mais próxima do conceito de Estado de exceção, o qual anula o Estado jurídico individual mediante o argumento do combate ao caos institucional instalado, do que de realmente de um Estado democrático de direito.

Destarte, como escreveu Serrano: “A exceção, portanto, decorre de uma necessidade do Estado que leva ao afastamento do direito, ou seja, a sua suspensão, para garantir-lhe sobrevivência” (2016, p. 69). O conceito de exceção teve sua gênese na Constituição alemã de 1919 (Constituição de Weimar), o qual dava permissão ao governante para que, em situações de excepcionalidade, fosse instaurada uma ditadura de caráter provisório, com a finalidade de eliminar os riscos ora latentes e fosse restabelecida a ordem.

Nesse contexto, Schmitt defendia que:

Para isso precisa-se de uma competência, a princípio, ilimitada, ou seja, a suspensão de toda ordem existente. Entrando nessa situação, fica claro que, em detrimento do Direito, o Estado permanece. Sendo o Estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém, aqui, uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em sentido real. Em Estado de exceção, o Estado suspende o Direito por fazer jus à auto conservação, como se diz (2006, p.13).

Historicamente, o poder e o Direito diversas vezes apresentaram premissas opostas e intrinsecamente excludentes, mas que de modo paradoxal fundamentam os mesmos mecanismos de manutenção da “ordem” e o exercício do controle, como descreve Foucault:

Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto, regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade, ou regras de poder e poder dos discursos verdadeiros (…) Um princípio geral que diz respeito às relações entre direito e poder: parece-me que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. (…) afirmar que a soberania é o problema central do direito nas sociedades ocidentais implica, no fundo, dizer que o discurso e a técnica do direito tiveram basicamente a função de dissolver o fato da dominação dentro do poder para, em seu lugar, fazer parecer duas coisas: por um lado, os direitos legítimos da soberania e, por outro, a obrigação legal da obediência (2016, p. 279-281).

Tendo em vista que vivemos em uma sociedade de poder (econômico, ideológico e político) e, sobretudo de conhecimento, quem detém informação tem mais chances de gerir e controlar as dinâmicas de poder. Quando falamos em deter informação, chama-nos logo a atenção para a mídia, que, com seu grande poder de persuasão, exerce relevante interferência na vida das pessoas, especialmente hoje, numa sociedade tecnológica cuja velocidade de transmissão das informações é tão intensa quanto sua produção.

Por isso, é importante mencionar que sob influência midiática, conforme relata Castro, D’Araújo e Smith (2000), pudemos observar mais de uma vez ao longo da história, a população legitimar as ações totalitárias do Estado, como por exemplo, o que aconteceu no Brasil em 1964. Segundo os autores, o Golpe Militar teve apoio da maior parte da população, fomentado pelas emissoras de rádio, TVs e mídia impressa, que trataram de desgastar a imagem do então Presidente da República João Goulart perante o povo.

O consentimento da imprensa era virtualmente total. Durante anos, os atores da imprensa aceitaram essas proibições ilícitas, passaram recibo, registraram-nas, fizeram-nas circular até o redator certo, não realizando, então, a cobertura ou investigação do assunto proibido. Nos poucos casos em que foi tentado um método mais agressivo de censura, houve esforços criativos e enérgicos por parte dos atores da imprensa afetados para desafiá-la, condená-la e rejeitá-la. Mas para a vasta maioria sujeita às rotinas anônimas, banais, burocratizadas, havia continuamente o consentimento cotidiano e as modalidades diárias de inércia (SMITH, 2000, p.11).

Logo, quando isso ocorre, os abusos de poder e as reiteradas usurpações de direitos individuais adquirem status de legalidade e o medo disseminado provoca uma reação de troca de liberdade por segurança. Corroborando com o pensamento de que o Estado de direito tem convivido ao longo do tempo com o Estado de polícia ao qual deveria opor-se, explica Zaffaroni:

Por isso, existe uma dialética contínua no Estado de direito real, concreto ou histórico, entre este e o Estado de polícia. O Estado de polícia que o Estado de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e romper os muros que o Estado de direito lhe coloca (2011, p. 170).

Assim, muitas vezes, é possível identificar uma cooperação velada entre a mídia e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, onde há uma mistura de interesses público-privados e a violação de limites constitucionais a eles impostos. Tornando nebulosa a fronteira entre estes que são os pilares do Estado Democrático de Direito, mitigando a democracia e, consequentemente, o fortalecendo o Estado de exceção, seja pela constante violação de direitos da pessoa ou pela violência das leis criadas.

Os exemplos são vários e pertencem a quase todas as sociedades democráticas ocidentais: a prisão de Guantánamo e o PatriotActnos EUA, o trato não humano a estrangeiros em países europeus, o excesso de medidas provisórias no Brasil, as façanhas do BOPE, além de medidas judiciais legitimadoras da exceção, tais como a decretação de prisões preventivas com finalidades transversas (obtenção de delações premiadas e confissões, por exemplo) e as condenações sumárias de presos políticos, sem obediência aos elementares direitos fundamentais (SERRANO, 2016. p. 29).

Para parte da doutrina como Dallari e Arantes, o Brasil vem desenvolvendo um processo de desconstitucionalização, mediante uma avalanche de emendas constitucionais e pela interferência do Executivo através de sucessivas medidas provisórias com força de lei:

A Constituição já foi emendada mais de sessenta vezes. Em suma, trivializou-se. Acresce que esse furor legislativo e constituinte emana de um executivo ampliado e de fronteiras nebulosas, governando rotineiramente com medidas provisórias com força de lei. (…) há no Brasil lei, mas não um Estado de Direito (ARANTES, 2010, p. 2013).

Fazendo com que, ainda de acordo com Arantes, 2010, p. 2013: “na melhor das hipóteses, estaríamos vivendo num Estado de mera legalidade formal; na pior, retomando o rumo das ditaduras constitucionais.”

Como observou Giorgio Agamben, a exceção não se localiza, na atualidade, apenas no âmbito da crise política ou na situação excepcional e temporária imaginada por Carl Schmitt, em que surge o Estado de necessidade estatal como razão para submissão do direito ao poder soberano do governo. Ela ocorre também no interior da rotina de nossas sociedades democráticas, como espaço de soberania absolutista, suspensiva do direito e dos direitos. (…) as medidas de exceção percebidas na rotina democrática variarão de forma e legitimação, dependendo do grau de desenvolvimento do país em que são verificadas. Nos países de capitalismo tardio e periférico, como na maior parte da América Latina, há um Estado de exceção permanente (de fato), que convive com um Estado de direito permanente (formal) (SERRANO, 2016. p. 27).

Percebe-se que, com o apoio popular e em nome da ordem e da justiça, muitas vezes, direitos são violados ou suspensos sob o argumento do restabelecimento da normalidade e o poder político supera a lei dentro dos tribunais. Juízes, enquanto intérpretes do ordenamento jurídico, em vários momentos, decidem contra legem: “Ao desaparecer a sujeição do juiz à Constituição, o juiz penal muda de papel: deixa de ser o garantidor dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição da República a todos e a cada um, independentemente da vontade da maioria” (CASARA, 2017, p. 164).

Mecanismos excepcionais são criados e violam princípios democráticos, resquícios autoritários se mantêm presentes como métodos de governo, por exemplo, em sentenças judiciais de real exceção, onde mudando os envolvidos ou os interesses políticos, tem-se uma decisão diferente.

Os governos não estão interessados em aliviar as ansiedades de seus cidadãos. Estão interessados, isto sim, em alimentar a ansiedade que nasce da incerteza quanto ao futuro de constante e ubíquo sentimento de insegurança, desde que as raízes dessa insegurança possam ser ancoradas em lugares que forneçam amplas oportunidades fotográficas para os ministros tensionarem seus músculos, ao mesmo tempo que ocultam os governantes prostrados diante de uma tarefa que são fracos demais para levara cabo (BAUMAN, 2017, p. 33-34).

Neste sentido, Schmitt (2006) estabelece uma crítica à democracia representativa, pois na sua ótica, a eleição de representantes não passa de uma manipulação autoritária do povo, tendo em vista que os eleitos não representarão os interesses daqueles que de fato os elegeram, mas dos que despenderam recursos na sua campanha e garantiram sua vitória, além de seus próprios interesses (econômico, manutenção e perpetuação do poder), desmontando assim o sentido de um governo democrático parlamentar.

No exercício do mandato, por sua vez, o eleito não realiza a vontade de quem o elegeu, senão sua própria vontade. Consubstancia-se, dessa forma, uma falsa relação entre o líder e seus liderados; um processo no qual a burguesia serve para manipular o povo somente. (…) Já que Carl Schmitt rechaça a democracia representativa como liderança estatal, a melhor forma de alcançar essa unidade é por meio da identificação do seu povo com seu líder, assim como ocorre no âmbito familiar, em que os filhos reconhecem a legitimidade do seu pai por possuir identificação carismática com ele. É o sentimento de “pertencimento” que torna a relação factível e fortalece os vínculos culturais deste povo, tornando-o forte e homogêneo. Portanto, se uma decisão tomada por um corpo de representantes eleitos não tiver como característica esta figura de identificação com seu povo, necessariamente é falsa e ilegítima, segundo ele (SERRANO, 2016, 48-49).

Schmitt defende o Autoritarismo como forma de governo mais eficiente, na qual a formação do Estado e da ordem jurídica tem como premissa a decisão estatal. Assim, o soberano decide o melhor para seu povo, sobrelevando a vontade da maioria e desconsiderando os direitos individuais, prevalecendo o conceito de homogeneidade sobre o de igualdade, sua decisão se faz lei. Ou seja, nesta concepção não há validade a lei em sentido meramente formal.

A democracia para Carl Schmitt tem inspiração grega, pois importa em sua concepção apena a decisão da maioria, em detrimento de qualquer minoria. Na democracia moderna, a decisão deve sempre respeitar os direitos da minoria, pela noção de liberdade em consonância com o direito individual. Nesse modelo schmittiano, no lugar da eleição há a figura da “aclamação”. Se o povo não tiver satisfeito, afasta seu líder por aclamação ou lhe conduz como soberano pela mesma forma, por simples identificação carismática. O que importa para Carl Schmitt é a ideia de soberania. O soberano para Carl Schmitt é aquele que pode decretar quem é amigo e quem é inimigo e, mais do que isso, soberania só existe no Estado de exceção – em que há suspensão dos direitos individuais –, e não no Estado de direito. Pois neste a relação de cidadania limita a atuação do Estado – pelo reconhecimento de direitos dos cidadãos – e a soberania não se realiza de forma plena a fim de realizar a identificação desse povo. Na exceção, por sua vez, interessa apenas a vontade geral do povo e não os direitos individuais dos cidadãos, inclusive, com o reconhecimento da disponibilidade da vida do seu povo e, em especial, dos seus inimigos (fundamentação para o genocídio) (SERRANO, 2016, p. 49-50).

Consoante a ideia de que o Estado antecede ao Direito, e aquele deve ser preservado a qualquer custo, mesmo que em detrimento deste, Schmitt prega que em estado de “normalidade” seja mantido no ordenamento jurídico vigente, porém em situação de crise as normas devem ser suspensas e a decisão do soberano é fundamental ao restabelecimento da ordem, pensamento que se afina à ideia de emergência e excepcionalidade penal e que sustentam muitas políticas criminais contemporâneas

Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante. Todo Direito é “direito situacional”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele tem monopólio da última decisão. Nisso repousa a natureza da soberania estatal que, não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio decisório, em que a palavra decisão é utilizada no sentido geral ainda a ser desenvolvido. O estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal. Nisso, a decisão distingue-se da norma jurídica e (para formular paradoxalmente), a autoridade comprova que, para criar direito, ela não precisa ter razão/direito (SCHMITT, 2006, p. 13-14).

Os ideais da teoria schmittiana são indispensáveis à compreensão dos artifícios de exceção presentes na atualidade, em especial nos países subdesenvolvidos como o Brasil, insertos na práxis democrática como uma autêntica prática de soberania pura. Esta se caracteriza de forma atípica, pois para Schmitt (2006) soberano é quem toma a decisão em um Estado de exceção.

A soberania pura refere-se ao sentido convencional de soberania que Houaiss(1) define como: propriedade ou qualidade que caracteriza o poder político supremo do Estado dentro do território nacional e em suas relações com outros Estados.

Para Agamben, o conceito de soberania difere tanto da concepção dada por Kelsen quanto da definição estabelecida por Schmitt:

Não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão (2004, p. 35).

Ou seja, a soberania não pode ser considerada simplesmente jurídica, tendo em vista que se encontra ao mesmo tempo dentro e fora do direito: “não é um fato, porque é criado apenas pela suspensão da norma; mas, pela mesma razão, não é nem ao menos um caso jurídico, ainda que abra a possibilidade de vigência da Lei” (AGAMBEN, 2004, p. 26). Todavia, este teoriza que dentro das democracias contemporâneas ocidentais lateja um Estado de exceção que se inclina a proceder diante de um largo percentual da sociedade como sendo estes seres humanos desprovidos de qualquer proteção por parte do Poder Público, seja ela jurídica ou política, resumindo-os a uma simples sobrevivência biológica.

Numa concepção mais esclarecedora a respeito do Estado de direito, o professor Zaffaroni nos ensina que: “Os Estados de direito não são nada além da contenção dos Estados de polícia, penosamente conseguida ao longo das lutas contra o poder absoluto” (2011, p. 169). Logo, não é difícil entender que mesmo tendo como princípios a garantia de direitos, valores e condições de vida, a idealização de inimigo trazida por Schmitt: “Aquele ser desprovido de qualquer proteção política ou jurídica, de qualquer direito fundamental mínimo inerente ao ser humano. Esse inimigo clama pela figura de um Estado autoritário pelo medo que ocasiona na sociedade” (SERRANO, 2016, p. 70).

Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que por sua essência, não admite gradações e, portanto, torna-se incompatível com a teoria política do Estado de direito. Com isso, introduz-se uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais internacionais do Estado de direito, ou seja, com a teoria política deste último (ZAFFARONI, 2011, p. 11).

Ao longo do tempo a idealização do inimigo vem assumindo inúmeras feições: étnica, religiosa, político, ideológico, racialetc.. No Brasil, atualmente, representado pela “figura mítica do bandido, o agente da violência que quer destruir a sociedade” (SERRANO, 2016, p. 167) mantém-se viva e mitiga cotidianamente o Estado democrático, legitimando a violação de direitos fundamentais, deixando evidentemente exposto o Estado de polícia que convive com as democracias ocidentais contemporâneas. “Frequentemente, nega-se o caráter humano do inimigo apelidando de nomes como ratos, baratas ou vermes” (GROSSMAN, 2008, p.218), assim, “matar torna-se muito mais fácil quando a vítima parece inequivocamente diferente de quem executa o ato” (Op. Cit.).

As muitas histórias de opressão, de subjugação, aviltamento e constrangimento impostos em razão da certeza que alguns dizem ter sobre outros, leva-nos à evidência de que a pretensão pela verdade guarda em si algo de mal. E não é preciso acessar aqui as páginas da história para percebermos que no exato momento em que identidades são ditas, em que afirmamos peremptoriamente algo de alguém, algo de profundamente perverso se estabelece. Assim foi e é com os negros, com os índios, as mulheres, os idosos, com os gays, com os que dizemos serem anormais e com todos os que fogem aos padrões estabelecidos. Em todos momentos em que estabelecemos a determinação de algum conceito estanque, algo de desastroso se dá. Isso talvez pelo simples fato de que somos para além da própria prerrogativa do ser e que esse não pode ser o ponto primacial para nossa relação de uns com os outros (SAYÃO, 2020, p. 01).

Sendo assim, o que se percebe no Brasil é uma espécie de “semantização” da Constituição, produto de uma política elaborada para garantir as estruturas de poder e manter um modelo de sociedade construído a base da exploração, da desigualdade e da segregação, que produz uma realidade absolutamente divergente da teoria, no que se refere à missão e ao sentido da polícia. A atuação policial brasileira parece contrariar a essência do Estado Democrático de Direito, e, apresenta-se cada vez mais opressora e arbitrária, pois na democracia, polícia apenas como mecanismo de controle social foge do sentido da polícia, aproximando mais da polícia representante de um Estado Totalitário.

(…) mais do mesmo, isto é, quer – e faz – uma guerra aos “inimigos da ordem”, “os criminosos”, “os traficantes”. Defende a aniquilação do mal, o Outro, que, no caso, tem classe, cor e endereço. Trata-se de armar, aparelhar e fortalecer as polícias, lançá-las na infindável guerra “às drogas” e autorizá-las a matar. Não sendo de todo viável a execução extrajudicial consentida, conviria endurecer a legislação penal. Essa postura é por definição incompatível com o Estado Democrático de Direito. Talvez por isso dê passagem facilmente aos avatares da ditadura (…) (SOARES, 2019, p. 12).

Neste contexto, o Estado que deveria proteger a todos e garantir que os Direitos Humanos fossem respeitados, cria no imaginário popular a figura do “inimigo”, conforme explica Zimbardo:

O processo se inicia com a criação de noções estereotipadas do outro, percepções desumanizadas deste outro, o outro como imprestável, o outro como todo-poderoso, demoníaco, como monstro abstrato, como uma ameaça fundamental a nossos valores e crenças (2019, p. 32)

Ou seja, aquele ser indigno ao qual não devemos ter empatia, gerando intencionalmente no inconsciente popular um distanciamento emocional que ajuda a eliminar a empatia e negar a condição humana do inimigo, como bem descreve Grossman:

A distância cultural, oriunda de diferenças raciais e étnicas, capaz de permitir àquele que mata desumanizar a vítima;

Distância moral, que leva em conta a intensa crença na superioridade moral e nas ações vingativas ou vigilantes associadas a muitas guerras civis;

A distância social, reflexo do impacto do hábito de invariavelmente julgar subumana determinada classe, em um ambiente socialmente estratificado (2007, p.217).

E assim, o Estado sob a chancela de grande parte da população, doutrina os policiais para que esses eliminem a suposta ameaça à sociedade, que nesse caso, seria exatamente o delinquente comum ou de rua, aquele que nunca teve o apoio desse mesmo Estado para que não se envolvesse com a criminalidade, seja por meio de ações afirmativas(2) que viabilizem a redução da desigualdade, seja pelo acesso à educação pública e de qualidade, seja pela oportunidade de empregos etc.. Ao contrário, são vítimas da segregação e exclusão social que no primeiro momento os privam de direitos básicos como saneamento, saúde, educação e segurança, e depois os privam da liberdade, colocando-os dentro dos presídios, como denuncia Wacquant:

A se prestar atenção tanto à dinâmica socioeconômica quanto à discursiva em ação no elo cada vez mais forte entre as renovadas políticas de bem-estar e penal, tem-se os meios para constatar que o explosivo crescimento do alcance e da intensidade da punição preenche três funções inter-relacionadas, correspondendo, cada uma delas, grosso modo, a um “nível” na nova estrutura de classes, dualizada pela desregulação econômica. No plano mais baixo da escala social, o encarceramento serve para neutralizar e estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, notadamente os membros despossuídos dos grupos estigmatizados que insistem em se manter “em rebelião aberta contra seu ambiente social” (2007, p. 16).

Na mesma linha de raciocínio, em nota especificamente ao leitor brasileiro, Wacquant diz:

A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. Ela afirma a onipotência do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem pública – simbolizada pela luta contra a delinquência de rua – no momento em que este afirma-se e verifica-se incapaz de conter a decomposição do trabalho assalariado e refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira. (…) No entanto, sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século (2011, p. 9).

Outrossim, percebe-se que a falta de apoio aos grupos estigmatizados e socialmente excluídos não se dá apenas pelo Estado, mas pela sociedade de maneira geral, a medida que vem perdendo o senso de comunidade, deixando de cuidar de seus membros, delegando isso ao Estado, como chama atencão Ripollés para “una notable transformación de las relaciones y valores sociales y una significativa redución de lasolidaridadcolectiva” (2007, p. 84), assim permitindo que o Estado utilize seu jus puniendi em situações que anteriormente eram resolvidas pela própria sociedade, como pequenos delitos cometidos por jovens da comunidade. Entendamos que quando nos referimos à solução dada pela própria sociedade, não estamos nos referindo à autotutela ou “justiça com as próprias mãos”, tendo em vista que há uma vedação expressa no Código Penal Brasileiro ao “exercício arbitrário das próprias razões” no artigo 345, pois senão estaríamos falando em uma sociedade de justiceiros. O que Ripollés relata é a perda progressiva do dever de cuidado, onde membros da comunidade, como vizinhos, quando viam um jovem cometendo pequenos delitos, os reprimiam, levava-os à presença dos seus familiares que os puniam de maneira familiar, e, ao invés disso hoje, o vizinho chama a polícia.

Esse distanciamento social, produto da perda do sentimento de cuidado para com o Outro, mostra-se em contraposição ao princípio humano de responsabilidade com o semelhante, conforme exclama Márkel, no romance filosófico de Fiodor Dostoiévski, escrito em 1879 – Os Irmãos Karamázov – : “Cada um de nós é culpado por tudo perante todos, e eu mais que todos” (2019, p. 333), máxima que é abordado com maestria por Emmanuel Levinas na obra “Ética e Infinito”, quando se refere à responsabilidade por outrem como constitutiva da própria subjetividade, uma vez que, para ele, a subjetividade somente pode ser descrita em termos éticos: “A responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjetividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para o Outro” (2010, p. 80).

Inspirado em Levinas e a perspectiva que ele dá ao Outro, especialmente na obra Totalidade e Infinito, Dussel afirma que “a ‘responsabilidade’ ou o ‘assumir o outro’ é anterior a qualquer consciência reflexa” (2018, p.19).

No mesmo sentido da máxima dostoieviskiana de que “todos devem servir uns aos outros” (2019, p. 333) e, portanto, de responsabilização de todos para com todos, como nos ensina Levinas, principiam-se os ditames do Estado Democrático de Direito, quando, por exemplo, ao tratar da segurança pública, embora reconheça ser dever do Estado, afirma ser responsabilidade de todos, conforme traz o artigo 144 da Constituição Brasileira de 1988.

Sendo assim, a doutrina que também reconhece o dever do Estado na preservação da segurança pública e consequentemente a importância da polícia nesse processo, corrobora com a ideia de que o garantimento da segurança pública não se restringe às polícias, mas, como prevê o texto constitucional, é uma responsabilidade de todos, conforme explica Nucci:

Não cabe a polícia (civil ou militar) a segurança pública como um todo. A responsabilidade é de todos nós. Tornamos à questão inicial dos direitos humanos, digamos, mais difusos, como a solidariedade. Fosse esta cultivada pelo indivíduo, muitos males deixaram de existir e vários crimes poderiam ser evitados. Isso porque a crueldade encontra obstáculo na fraternidade; esta é uma verdade e não uma pregação (2016, p. XII).

No entanto, parece-nos que depois de 21 anos de ditadura militar no Brasil (1964 – 1985), o processo de reconstrução democrática ou a transição de um regime autoritário para um regime democrático se mostrou sobremaneira deficiente, sem que houvesse uma justiça de transição(3) eficiente que ensinasse aos brasileiros o conceito de democracia, como aconteceu na Alemanha pós nazismo, por exemplo, o que criou uma estrutura democrática frágil, com órgãos estatais que não cumprem sua missão e uma população que não entende o sentido de viver em democracia, permitindo a reiterada violação de direitos humanos por parte de órgãos como a polícia.

Como disse NUCCI:

O que é inadmissível, no Estado Democrático de Direito, é acatar a deliberada infringência aos direitos humanos em nome de uma presença segurança pública, aceitando os abusos policiais como se fossem indispensáveis para o sossego e a paz alheia. Esse acatamento pode dar-se por meio da omissão da sociedade (ou do incentivo à violência, como ocorre com os casos de linchamento), bem como pela manifesta indiferença dos poderes de Estado. O desrespeito aos direitos humanos torna-se visível quando, ocorrendo abuso policial, alguns segmentos da sociedade aplaudem, elogiam o trabalho da polícia, manifestam-se favoravelmente em redes sociais e por outros meios de comunicação. Cuida-se de uma forma velada de propagar o crime, em autêntica apologia (2016, p. 72).

Desta maneira, observam-se poucas mudanças com relação às práticas autoritárias que violam Direitos Humanos realizadas por instituições policiais acobertadas por um discurso formatado que “jorra” do senso comum de que “bandido bom é bandido morto”, que “Direitos Humanos só protege bandido” ou que “Direitos Humanos é para humanos direitos”.
Nucci Ressalta o paradoxo que é esse pensamento:

A comunidade deve enxergar os direitos humanos como aliados contra qualquer forma de opressão. Matar bandidos, como muitos pensam ser viável, é simplesmente um crime. Não há pena de morte no Brasil e, mesmo que houvesse, deveria ser decretada após justo processo legal. Se o policial extermina um pretenso bandido, cuida-se de homicídio. O apoio eventualmente recebido de parcela da comunidade é um desabafo coletivo de desgosto em face dos elevados índices de criminalidade. Pode ser compreensível, mas não justificável. Um bandido morto não é um bandido a menos, mas um crime a mais, elevando os índices de cometimento de delitos naquela localidade (NUCCI, 2016, p. 47).

Esse discurso parece acentuar a ideia do inimigo (não humano) e o desejo de vingança da saciedade, onde “o bem e o mal, o justo e o injusto tornaram-se matéria de opinião” (JOUVENEL, 2010, p.383), permitindo a violação de direitos sob a justificativa de uma pós-justiça.

A violação dos direitos humanos não é algo exclusivo dos regimes autoritários. A truculência policial desafia os sistemas políticos. As agências monopolizadoras do uso legítimo da força, no sentido weberiano, mostram um surpreendente grau de autonomia vis-à-vis às autoridades democraticamente constituídas. Existia a crença otimista de que com a democracia poder-se-iam estabelecer significativos patamares de respeito aos direitos humanos. É que a visão liberal estipulou que, com o surgimento da democracia, viria, necessariamente, o Estado de Direito (ZAVERUCHA, 2006, p. 13-14).

Todavia, dentro das democracias contemporâneas ocidentais ressoa um estado penal, como disse Wacquant (2007), que se inclina a proceder diante de um largo percentual da sociedade como sendo estes seres colocados à margem da sociedade, invisíveis aos olhos do Poder Público.

3. Palavras finais
Diante de todas as informações suso mencionadas, resta-nos a conclusão de que precisamos, prontamente, repensar a forma como estamos exercendo nossos papeis na sociedade e o quanto o egoísmo está afetando nosso senso de comunidade, consequentemente, como enxergamos e tratamos o Outro. Urge a necessidade de desenvolvermos políticas públicas baseadas na alteridade, para que a sociedade possa entender e internalizar a ideia de que somos todos iguais em direitos e deveres, independentemente de raça, etnia, classe social, gênero ou qualquer outra característica, que venha a alimentar o discurso perverso que nos segrega.

Outrossim, faz-se imprescindível aos alicerces do Estado Democrático de Direito a imediata aproximação do que prevê ordenamento jurídico pátrio com a realidade vivenciada pela sociedade brasileira sob pena de colocarmos em xeque nossa democracia, tendo em vista que já é possível observar seu enfraquecimento frente às sucessivas e reiteradas atuações autoritárias do Poder Público.

Por fim, ressaltamos a importância de uma política criminal cujas bases sejam firmadas nos direitos humanos, na salvaguarda da vida e que combata veementemente qualquer forma de desigualdade, opressão e aviltamento da dignidade humana, bem como resinifique o papel do servidor público nesse processo, em especial os agentes de segurança pública, tendo em vista que são estes os que estão “na ponta da lança” lidando diretamente com as maiores mazelas sociais e principalmente porque como nos chama atenção Balestreri: “a polícia é o vetor potencialmente mais promissor no processo de redução de violações aos Direitos Humanos” (1998, p.4-5).

 

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Abstract: The main objective of this article is to analyze how society’s fear and sense of insecurity interferes with the elaboration of a criminal policy and how Criminal Law can be used as an instrument to hunt the “enemy”. In order to do so, we work with concepts such as democracy, human rights, fundamental rights, state of exception and public security. Within these themes, we carried out an analysis of possible proximity and distance from the contemporary criminal policy model, adopted by most Western countries, comparing it with what is expected for a Democracy, under the rule of the law. As theoretical framework, we used the reflections of Thomas Hobbes, Giorgio Agaben, Carl Schmitt, Zygmunt Bauman, Enrique Dussel, Philip Zimbardo, Raúl Zaffaroni, Michel Foucault, Loic Wacquant, Rubens Casara, Luís Eduardo Soares, Guilherme de Souza Nucci and Pedro Estevam Serrano.
Keywords: Fear; Insecurity; Criminal Law; Criminal Policy; Democracy
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REFERÊNCIAS

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Notas:

(1) HOUAISS, A. Dicionário Houaiss. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#0 Acesso em: 19/07/2020.

(2) “São medidas especiais de políticas públicas e/ou ações privadas de cunho temporário ou

(3) “La justicia transicional es una respuesta a lasviolaciones sistemáticas o generalizadas a losderechos humanos. Su objetivo es reconocer a lasvíctimas y promover iniciativas de paz, reconciliación y democracia. La justicia transicional no es una forma especial de justicia, sino una justicia adaptada a sociedades que se transforman a símismasdespués de un período de violación generalizada de los derechos humanos. Enalgunos casos, estas transformacionessuceden de un momento a otro; enotros, puedentener lugar después de muchas décadas” (Disponível em: https://web.archive.org/web/20110412075758/http://www.ictj.org/es/tj/. Acesso em: 12/06/2020).

 

 

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