A Controvérsia sobre a Prisão dos Condenados pela Tragédia da Boate Kiss.

Moacir Leopoldo Haeser – Desembargador aposentado do TJRS e advogado, Especialista em Ciências Penais pela UFRGS, ex-professor da Faculdade de Direito da UNISC e da Escola Superior da Magistratura.

 

A concessão e a cassação de liminares por Juízes e Tribunais, em qualquer caso de grande repercussão, sempre causa muita perplexidade ao grande público, levando ao descrédito do Poder Judiciário.

A divergência de entendimento de Juízes e de membros de Tribunais é mais fácil de ser entendida por profissionais. Sempre citava para meus alunos o Livro “O Caso dos Exploradores das Cavernas”, obra publicada em 1949 pelo professor de Harvard Law School e jurista, Lon L. Fuller, que aborda as diferentes formas de interpretação e de posicionamento dos julgadores frente a um complicado caso judicial. Estavam em julgamento os mineiros sobreviventes que estiveram presos numa caverna e que sortearam um deles para ser morto e servir de alimento aos demais.

No caso da Boate Kiss o Juiz determinou a prisão com base no art. 492, do CPP, na redação da Lei nº 13.964/2019, em face da condenação a penas superiores a quinze anos.

O Des. Manuel Lucas, do Tribunal de Justiça, concedeu liminar preventiva em Habeas Corpus para suspender a prisão. Na decisão invoca precedentes do STJ, que aplicam orientação repetida pelo STF da presunção constitucional de inocência, considerando que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado da condenação.

Em decisão excepcional de contracautela, prevista para questões de natureza cível, em casos de risco de grave lesão, o Presidente do STF, Min. Luiz Fux, acolheu pedido do MP para suspender a liminar, ordenando a imediata prisão dos réus. Cita precedente de 2016 do Min. Teori Zavaski. Invoca, também, a alteração do CPP pela Lei n. 13.964/2019 em face de condenação a penas superiores a 15 anos. Embora se trate de norma processual, geralmente de aplicação imediata, é muito questionável sua aplicação retroativa em prejuízo dos acusados.

No caso de razoabilidade do recurso, a própria Lei admite a atribuição de efeito suspensivo pelo Juiz Presidente do Júri e pelo Relator do recurso, não sendo a prisão, portanto, obrigatória.

O inusitado, no caso, é o salto de instâncias, diretamente ao Presidente do STF. A regra de competência é que o pedido de contracautela seja dirigido ao Presidente do Tribunal competente para julgar o recurso, no caso o Tribunal de Justiça. Foi ignorado, ainda, o Superior Tribunal de Justiça, cuja jurisprudência foi fartamente transcrita na decisão liminar atacada. Mais inusitado é que nesses precedentes o STJ invoca justamente a orientação do STF sobre a presunção constitucional de inocência.

Causou mal-estar entre os Juízes a nova decisão do Min. Luiz Fux, alargando os efeitos daquela decisão liminar, para cassar a jurisdição da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, que estava julgando o mérito do habeas corpus. No acordão, que concedeu a ordem por maioria, os Desembargadores manifestam sua estranheza e desconformidade com a inusitada decisão do Ministro e criticam a insegurança gerada pelas decisões contraditórias dos Tribunais, que tem o dever constitucional de pacificar a jurisprudência, para nortear as decisões judiciais inferiores.

O Des. Honório Gonçalves da Silva Neto julgou prejudicado o habeas corpus mencionando que o Presidente teria ficado contrariado ao tomar conhecimento dos dois votos concessivos da ordem e proferido decisão que consubstancia verdadeira avocação da causa, ex officio.

No voto do Revisor, Des. Jayme Weingartner Neto, este examina a doutrina e jurisprudência sobre o tema e cita o HC 174759, Relator o Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, ou seja, muito posterior ao precedente transcrito pelo Presidente. Este acordão aplica a presunção constitucional de inocência e, inclusive, proclama a inconstitucionalidade da lei nova invocada pelo Ministro Fux e que fundamentou a prisão. Citando Ferrajoloi, diz o Des. Jayme que Os juízes não devem buscar o consentimento da opinião pública, mas apenas a confiança das partes do processo”.

Passei tal situação no famoso caso do “Fumo Papel”, em que não decretei a prisão porque não havia elementos de prova. Vi que o inquérito policial era deficiente, trazia equivocado enquadramento penal como furto e o processo teria longa tramitação, exigindo perícia em mais de setecentos cheques. No entanto, face à repercussão do caso, até o padre de outra cidade me xingou na igreja durante a missa para que cumprisse o meu “dever”.

 

 

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