Reflexões sobre o ensino de prática jurídica tributária no Brasil

Rodrigo Caramori Petry – Doutor em Direito Tributário pela USP (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco). Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Advogado e Professor de Direito Tributário. Membro do IBDT.

 

As faculdades de Direito e seus núcleos de prática jurídica precisam assumir seu protagonismo na função de tornar o estudante um profissional hábil e competente para desempenhar com eficácia as suas tarefas no mundo do trabalho.

1. Introdução 
Pensar sobre os melhores caminhos para o ensino de prática profissional jurídica é uma necessidade frente a um problema ainda muito sentido no Brasil, em boa parte das faculdades de Direito: a baixa eficiência do ensino jurídico em relação à aquisição de experiência profissional. Essa carência de ensino experiencial na prática pedagógica do Direito se repete desde os primórdios do ensino jurídico e ainda persiste em diversas faculdades, obrigando o aluno a buscar experiência por meio de estágios profissionais ou cursos práticos realizados fora do ambiente universitário.

Entretanto, estágios possuem limitações naturais em seu formato, porque, afinal, não se trata de um ensino sistematizado, pensado e operado para uma experiência pedagógica rica e avaliada.

De outro lado, o explosivo avanço do alcance das redes sociais como o Instagram, Facebook e Linkedin e a popularização das ideias do marketing digital aplicadas na área do Direito estão fazendo surgir uma grande quantidade de cursos on-line sobre prática profissional da advocacia. Esses cursos declaram como objetivo “ensinar o que a faculdade não ensina”, focando em capacitar os alunos a conseguirem melhores e mais rápidos resultados na advocacia.

Nesse fenômeno digital inédito, o conhecimento das ferramentas e estratégias digitais está sendo assimilado rapidamente pelos jovens estudantes na área do Direito, muitos deles nativos digitais que já cresceram envoltos em um ambiente on-line, em que as redes sociais e a internet passam a representar a porta pela qual todos devem passar para se apresentar ao mundo profissional e dos negócios, inclusive na advocacia.

Essa veloz revolução digital tem oportunizado que jovens talentos da advocacia se destaquem na área de cursos voltados a aspectos estratégicos dos negócios da advocacia que complementam a prática jurídica e quase não são abordados nas faculdades, como é o caso, por exemplo, do Curso “Destravando na Advocacia” (DNA) de autoria da advogada Camilla Barriunuevo(1).

Quem já não ouviu a famosa frase: “na prática, a teoria é outra…”? Ou algum alerta ou reclamação sobre um profissional que é “advogado de pouca prática”? É comum, na advocacia, que clientes interessados na contratação perguntem sobre a experiência do profissional em casos semelhantes, ou seja, investigando o nível de aprendizado experiencial do advogado.

Se o aprendizado experiencial é tão relevante na vida prática, porque não ampliar e melhorar seu alcance nas faculdades de Direito, aproveitando melhor o tempo e o investimento dos alunos durante os 5 anos de sua formação, sobretudo para oportunizar a busca da proficiência em áreas mais técnicas e complexas, como no caso do direito tributário?

 

2. A prática jurídica no ensino do Direito
Antes de avançar nesta reflexão sobre o ensino de prática, é importante firmar o que é a prática jurídica ou clínica de Direito: é uma atividade, um método de ensino ou uma disciplina desenvolvida nos cursos de graduação em Direito no Brasil, e também em diversas outras escolas de Direito pelo Mundo(2), com o objetivo de ensinar conhecimentos e habilidades necessários ao exercício das carreiras jurídicas. Seu objetivo é oferecer um background de experiências ao aluno que lhe permitam saber o que é preciso realizar e também como realizar as tarefas intelectuais e materiais para a entrega das soluções jurídicas que os profissionais do Direito devem apresentar.

Quando é uma atividade proposta pelo professor dentro de uma disciplina teórica, a prática jurídica funciona como um método de ensino participativo, também chamado de “oficina de Direito”.

Há uma grande disparidade entre as escolas de Direito no Brasil em relação à estruturação e implementação de disciplinas de prática jurídica. Diversas faculdades ofertam poucas disciplinas de prática jurídica, preferindo que seus alunos busquem a prática em estágios profissionais mediante convênios com outras entidades, órgãos públicos ou escritórios de advocacia.

Porém, é possível que um período de estágio em órgão público, em escritório privado ou empresa mostre-se menos eficaz se comparado ao mesmo período de tempo dedicado em uma disciplina prática acadêmica especializada, sistematizada e bem orientada por um Professor, como ocorre em algumas poucas instituições de ensino com boa oferta de disciplinas práticas(3).

Esse panorama de relativa pouca valorização das clínicas jurídicas nas escolas de Direito no Brasil deve sofrer significativa alteração a partir da implementação obrigatória das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Direito, publicadas na Resolução nº 5, de 17/12/2018, da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, e que valorizam especialmente o ensino voltado à prática.

Nesse contexto ganha destaque o ensino da prática em direito tributário, uma área complexa e que demanda muito conhecimento interdisciplinar, que não pode ser explorado suficientemente nas disciplinas teóricas. Hoje no currículo comum em diversas faculdades há um grande distanciamento entre a formação do aluno em Direito e o que ele deve conhecer para poder exercer com eficiência sua atuação em direito tributário. Portanto, é preciso mudar essa rotina das faculdades, para que o aluno tenha oportunidade desse ensino experiencial.

 

3. Como lecionar a prática jurídica em direito tributário

A disciplina de prática jurídica em direito tributário no curso de graduação em Direito pode e deve ser implantada nas instituições de ensino superior, para ser desenvolvida dentro de um núcleo de prática jurídica (NPJ) ao lado de outras disciplinas de prática, como, por exemplo, “prática em Direito Civil”, etc.

A disciplina terá como foco a formação profissional do aluno para atuar em questões práticas, e deve possuir uma carga horária mais extensa do que aquela atribuída às disciplinas “teóricas” do curso de Direito. Isso porque a prática exige atividades de performance em sala de aula (com orientação e avaliação do professor), ou seja, o desempenho em tempo real de atividades jurídicas, seja em casos reais ou simulados.

As atividades da disciplina de prática jurídica geralmente são complementadas por um período de atividades de extensão universitária, juntamente com atividades de visitas técnicas (a órgãos jurídicos, audiências, etc.) e outras atividades complementares que auxiliam na formação.

Essa metodologia de ensino prático, também denominado “ensino clínico” em Direito, requer que o aluno seja submetido a situações reais ou simuladas que envolvam o atendimento a clientes (no caso da advocacia), ou a elaboração de decisões ou outros atos profissionais das carreiras jurídicas, e a resolução de problemas com o uso das ferramentas jurídicas estudadas nas aulas.

O aluno deve aplicar-se em atividades nas aulas, o que requer dele uma postura ativa, configurando-se a clínica de Direito como uma disciplina com método participativo, ainda que, em menor parte também existam aulas ou intervenções expositivas do Professor sobre a matéria.

O ensino de prática em direito tributário deve incluir simulações de atendimento, nas quais o professor assume o papel de cliente, que apresentará oralmente ou por escrito o seu problema jurídico, ou outra necessidade a ser atendida pelo profissional (advogado, no caso). Lições sobre prospecção de clientes, participação em reuniões iniciais, complementares e de finalização dos serviços é também oportunidade importante para que o estudante encare os desafios da busca e do atendimento aos clientes, e treine suas habilidades de raciocínio, organização, estratégia comercial de venda do serviço, estratégia jurídica, e comunicação técnica.

Assuntos como a organização do próprio negócio e da carreira, montagem de escritório, elaboração de contrato de sociedade entre advogados, a escolha do regime de tributação do negócio, marketing jurídico e ética profissional devem também compor a matéria, assim como o estudo de propostas de serviços e de honorários advocatícios. A correta e adequada precificação de serviços é item fundamental para tornar o aluno um profissional advogado financeiramente independente, o que deve ser um propósito dos estudos práticos de Direito.

Além disso, o estudo de casos já julgados e seus raciocínios e argumentos desenvolvidos; a realização de simulações de situações profissionais reais; trabalhos em equipe ou que exijam do aluno relacionar-se com pessoas de opiniões jurídicas contrárias; debater, fundamentar e explicar soluções; participar de simulações de julgamentos sobre questões jurídicas nas quais grupos de estudantes defendem teses contrárias; estudar problemas reais e as estratégias jurídicas adequadas para solucioná-los; elaborar peças processuais ou outras manifestações escritas e orais; enfim, são múltiplas as formas de oportunizar aos alunos a prática do Direito, utilizando-se metodologias que integrem conteúdos teóricos do curso com a prática das carreiras jurídicas.

Além disso, o ensino de prática em direito tributário deve levar em conta os desafios da Era da Internet, para oferecer uma tecnologia didática que faça frente ao contexto da “sociedade da informação e comunicação”, à possibilidade de automatização de tarefas jurídicas padronizadas por meio de algoritmos utilizados em aplicativos eletrônicos operados mediante inteligência artificial, e da modificação do mercado de trabalho para os operadores do Direito no País.

Assim, o ensino deve abordar ferramentas tecnológicas de apoio ao trabalho dos advogados e de outros profissionais ligados ao Direito, por meio das plataformas digitais, aplicativos e serviços de informação jurídica e jurimetria, de elaboração automatizada de documentos/petições, integração do controle processual e relatórios automatizados, atendimentos virtuais, perspectiva de mediação de conflitos on-line, análise e planificação de dados contábeis-tributários, processo eletrônico, etc.

 

4. Disciplina de prática não se limita ao formato dos “escritórios modelo”

As clínicas de Direito também estão envolvidas com a possível prestação de assessoria jurídica e assistência judiciária à população, em casos que conjuguem interesse da comunidade e relevância acadêmica, conforme resoluções de cada instituição de ensino. Entretanto, como as questões tributárias são geralmente apresentadas por pessoas com vida econômica formal e mais representativa, incluindo também empresas, o ensino de prática jurídica em direito tributário encontra algumas limitações nesse âmbito da atuação assistencial pro bono.

Porém, a disciplina de prática jurídica em direito tributário a ser desenvolvida nos modernos núcleos de prática jurídica (NPJ) deve ter como foco a formação profissional do aluno, e não deve ser confundida com atividades de atendimento social e jurídico à população carente, típicas do já antigo formato de “escritórios modelo de assistência judiciária” (EMAJs), que também podem ser desenvolvidas pelos alunos em paralelo dentro da estrutura de um NPJ.

Aqui é importante alertar: o ensino eficaz da prática em Direito precisa de investimento na boa remuneração e no regime horário dos professores, já que o trabalho docente em prática é muito mais complexo e trabalhoso se comparado a disciplinas teóricas expositivas. De nada adianta exigir “práticas inovadoras” dos professores sem lhes garantir uma remuneração digna para esse esforço.

 

5. Disciplina de prática jurídica não é o mesmo que um estágio

A disciplina de prática jurídica deve se desenvolver em ambiente acadêmico-profissional controlado, em que o aluno terá acesso à orientação de um professor, que disponibilizará uma pluralidade de casos escolhidos dentre aqueles que possam melhor desenvolver a experiência profissional. Aqui há uma primeira diferença em relação a estágios profissionais, nos quais não se escolhem as tarefas nem os casos jurídicos a serem atendidos.

As tarefas profissionais da disciplina de prática jurídica devem ser selecionadas dentre aquelas mais interessantes, estimulantes e desafiadoras, que diferenciam a disciplina em relação a estágios. O programa deve ser abrangente, com problemas escolhidos para dar uma visão profissional suficiente, oferecendo uma multiplicidade de tarefas recortadas pedagogicamente. O objetivo de recortes nas questões práticas é o de acelerar o progresso da experiência do aluno, em menor tempo se comparado aos estágios profissionais.

A disciplina de prática jurídica deve evitar tarefas burocráticas, repetitivas ou limitadas, e tem outra vantagem em relação a estágios que acompanhem casos reais: a disciplina, apesar de trabalhar com casos reais ou simulados não fica submetida ao lento trâmite dos atos processuais, pois os exercícios-caso podem ser acelerados no tempo, resumindo os acontecimentos para ocupar um período de tempo que possa ser analisado dentro do ano letivo.

É importante ao aluno ter uma visão integral do trâmite de um processo, o que não é possível se obter apenas com o atendimento ao público, em casos limitados ao formato pedagógico dos estágios. Isso porque, caso o aluno atue em um caso real de processo judicial, em um ano letivo ele só conseguirá acompanhar uma curta fase de tramitação, perdendo a visão geral do caso, pois deixaria de acompanhá-lo ao final do ano letivo. Processos em direito tributário podem durar 10, 15 anos, ou até mais. Para fazer frente a tais desafios pedagógicos, uma disciplina de prática deve oferecer casos em que seja possível observar mais rapidamente um conjunto de etapas processuais.

Outra vantagem da disciplina de prática jurídica em relação a estágios é que, ao invés de submeter um cliente real aos riscos de eventuais equívocos e descuidos no atendimento (ainda que orientado por um profissional), o estudante será o único prejudicado na Disciplina no caso de erros, descuidos ou desinteresse. O professor deve ensinar então as consequências práticas reais e prejuízos que ocorreriam em virtude de erros ou da falta de cuidado do aluno.

 

6. A prática e as atividades complementares

Por último, é importante perceber que as novas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Direito não só valorizam o ensino curricular da prática profissional no formato de NPJs, aqui em foco, mas, também que as instituições de ensino aproveitem cursos livres extracurriculares que os alunos cursem fora do ambiente universitário, e que possuam abordagens ativas, práticas e complexas, que valorizem conhecimentos e habilidades transdisciplinares voltados à atuação profissional.

 

Notas:

(1) https://www.instagram.com/camillabarriunuevo/?hl=pt-br.

(2) A Escola de Direito da Universidade de Harvard, nos EUA, destaca-se entre as melhores escolas que mais oferecem programas de clínica jurídica. Consulte-se: <https://hls.harvard.edu/dept/clinical/clinics/>. Acesso: 05/07/2021.

(3) A Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, por exemplo, oferece uma variedade de clínicas em diversas áreas do Direito. Consulte-se: <https://direitosp.fgv.br/oficinas-e-clinicas>. Acesso: 05/07/2021.

 

 

 

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